A “justiça” dos justiceiros não funcionou
Menor que foi preso ao poste no Rio voltou a roubar dias depois
publicado em 02/03/2014 às 00:05.
Por Amanda Aron / Foto: Fotolia - Reprodução - Arquivo Pessoal - Marcelo Alves
Ao chegar lá, Yvone encontrou uma cena
que mais lembrava os castigos aplicados a negros foragidos na época da
escravidão. Preso pelo pescoço por uma tranca de bicicleta, o jovem, de
apenas 15 anos, estava nu e tinha o corpo marcado por agressões, parte
de uma orelha havia sido decepada a sangue-frio. O crime havia sido
cometido por um grupo autointitulado “Os Justiceiros do Flamengo”,
composto por mais ou menos 30 jovens, entre eles alguns motociclistas.
Eles já foram identificados pela polícia e estão presos. Moradores da
vizinhança relataram que eles, por conta própria, costumam agredir e
torturar pessoas suspeitas na região.
Yvone chamou os Bombeiros porque não
conseguiria soltá-lo sozinha. Chamou uma ambulância e mandou o garoto
para o hospital e foi embora com a sensação de que vivemos tempos
difíceis de ódio ao próximo. O crime do garoto foi ter praticado
pequenos furtos. Ao ser enviado para um abrigo, ele foi reconhecido por
uma assistente social, razão que o levou a chorar copiosamente. A avó
foi identificada, mas se recusou a receber o neto de volta.
Semanas depois, no último dia 18, o
mesmo jovem foi apreendido por policiais militares após tentar assaltar
uma turista canadense e um turista inglês, em Copacabana. Ele foi
encaminhado à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).
Se toda violência praticada contra ele na ocasião fosse a saída para a
criminalidade, o susto e a humilhação que o rapaz sofreu não teriam
evitado esse novo roubo?
Isso prova que não é com violência que
se cura o ódio. Ao agirmos como os bandidos, não estamos combatendo-os,
pelo contrário, estamos perigosamente fazendo o mesmo que condenamos.
Na visão do advogado criminalista Mayus
Fabre, de São Paulo, essa situação na qual a sociedade se apropria do
papel pertencente à polícia é muito perigosa. “Apenas o Estado detém o
poder de polícia, caso contrário, aquilo que conhecemos por estado
democrático de direito cai por terra e voltamos ao estado natural, onde é
cada um por si”, explica. Para ele, a população se sente traída pelo
Estado, que não dá retorno aos tributos pagos. “Pagamos tanto imposto e
não vemos retorno, não vemos isso ser aplicado na educação, na saúde ou
na segurança, por exemplo, e aí as pessoas acreditam que para mudar
alguma coisa elas mesmas têm que agir, mas isso é um erro perigoso.
Acredito que os justiceiros nasceram desse sentimento de impunidade.
Muita coisa errada incita a população a querer agir, mas agir com as
próprias mãos de forma alguma é o caminho certo”, orienta.
Para o advogado, as pessoas não podem
abandonar seu papel de cidadãs. “É preciso votar correto, ter
participação política, a sociedade tem que agir dentro de seus limites.
Não se arruma o fim sem corrigir o início”, finaliza.
Se queremos um Brasil livre da
violência, devemos investir em uma mudança na base da sociedade. Atacar o
problema, ser violento com bandidos ou até mesmo matá-los (colaborando
com a célebre frase “bandido bom é bandido morto”) só piora o problema.
Pode matar um hoje, mas novos surgirão. O que vale é atacar a raiz.
Mudar as condições do País está ao
alcance de todos quando se utiliza o poder do voto de forma consciente.
Isso trará reflexos na educação e economia. Porém, este resultado virá a
longo prazo. A curto prazo é possível investir nas relações familiares,
cuidar do casamento (a base da família), tomar pequenas atitudes
diárias, como respeito, gentileza, educação entre outros (confira a arte
nas páginas 4 e 5).
Entrevista exclusiva com a mulher que ajudou o menor preso ao poste
A história do Brasil é baseada na
violência. Começamos eliminando os índios e desde então a violência
nunca deixou de aumentar. Seja na época da ditadura militar, seja na do
coronelismo, sempre tivemos episódios permeados por atitudes violentas.
Agora, criou-se uma cultura de violência. Onde falhamos? Eu diria que na
educação. Temos escolas para pobres que são as públicas e para os
filhos de quem pode pagar existem as escolas para ricos. Essas crianças
nunca se misturam. Não temos lei, justiça ou educação dignas. Se uma
pessoa sai e é assaltada ou morta, a culpa é do bandido, mas eu acho que
o buraco é mais embaixo, a culpa é do governo.
Por que as pessoas decidiram tomar o lugar da Justiça ou da polícia e agir sozinhas? Estamos vivendo a barbárie?
Quando percebo que as pessoas pensam que
matar é eliminar o problema, sinto que vivemos em uma época de ódio. A
sociedade quer justiça na hora, mas a justiça é lenta, por isso as
pessoas acham que podem fazer justiça com as próprias mãos. Isso é um
perigo, porque é assim que começam as guerras civis. O resultado é o
caos.
O jovem preso ao poste que você encontrou estava lá há quanto tempo? Ninguém fez nada antes de você?
Acredito que ele já estava lá há 40
minutos. Ninguém fez nada e não estamos falando de uma rua pouco
movimentada. Ele estava na Rui Barbosa, no Flamengo, onde passa muita
gente e muitos carros circulam. Quando o encontrei, ele nem se assustou,
porque estava chapado de tanto apanhar, parte de sua orelha foi
decepada, tinha apanhado muito e foi direto para o hospital.
E você recebeu ameaças por tê-lo soltado. É isso mesmo?
Sim, recebi ameaças. As pessoas me
disseram que eu deveria ter ateado fogo nele e não interferido na
justiça dos homens. Não dá para entender como existem cada vez mais
pessoas na sociedade que pensam assim. Eu acho perigoso e aterrorizador.
Vamos chegar a uma guerra civil. Diante desse cenário, a
responsabilidade dos professores e dos líderes religiosos é alta. O
Estado é omisso, está tudo sob nossos ombros. Por isso eu insisto que
professores e todos que lidem com educação procurem ensinar dentro de um
padrão ético e cristão.
Qual a solução para recuperar meninos como esse que você encontrou?
Acredito em dois pilares: educação e
Deus. Aprender a ler e a escrever é capaz de transformar o ser humano, o
conhecimento tem esse pode; e sem fé não vamos a lugar nenhum. Um
precisa do outro. Não se ensina mais amor a Deus e o resultado é isso.
Além disso, onde estão as famílias? Onde estão as mães que abandonam
seus filhos ou criam jovens violentos? Educação se aprende na família e
na sociedade, escola serve para instruir. Só que esses jovens não estão
tendo nem um, nem outro. Criança não aprende mais cidadania na escola,
quais são as normas adequadas de comportamento para se viver em uma
sociedade saudável.
Ela era a "tia Yvone" de algumas das
crianças assassinadas no episódio que ficou conhecido como "Chacina da
Candelária", no Rio de Janeiro, em 1993, quando oito jovens foram
assassinados a tiros pela Polícia Militar. Um deles que sobreviveu,
Sandro, anos mais tarde, em 2000, sequestrou o ônibus 174, acusado,
antes de ser preso e morto, chamou por ela. Recentemente, as atenções
voltaram para Yvone. Isso porque ela foi a única que teve coragem de se
aproximar do jovem negro preso nu a um poste, que protagonizou uma das
cenas mais emblemáticas da guerra de “todos contra todos”, preconizada
pelo filósofo inglês Thomas Hobbes em meados do século 17 e que vive a
sociedade brasileira moderna. Em entrevista exclusiva, ela contou um
pouco sobre a sociedade do ódio e como escapar dela.