Não vai ter Copa para milhares de famílias sem energia elétrica no Brasil
Fortunato da Silva parece viver em outro planeta. Quando vê a camisa
da seleção brasileira, mostra-se indiferente. Para ele, é um "pano
qualquer". O desconhecimento sobre o manto mais famoso do futebol
mundial justifica-se. O agricultor nunca teve energia elétrica em casa.
Sem opção, mantém distância de tudo o que cerca a Copa do Mundo, o maior
evento da Terra, prestes a ocorrer a 450 quilômetros dali, em
Fortaleza.
A rotina de Fortunato, que vive em Serra da Estrela,
comunidade localizada no município de Saboeiro, no sertão do Ceará,
assemelha-se à de pelo menos 242 mil famílias brasileiras sem acesso à
eletricidade (correspondentes a 960 mil pessoas, segundo o Ministério de
Minas e Energia). Essa parcela da população, espalhada pelo país,
dificilmente participará da Copa do Mundo mais cara da história, com
custo oficial previsto em R$ 25,7 bilhões, segundo o Portal da
Transparência.
Entrar em estádios será privilégio de poucos.
Mas, para Fortunato e seus vizinhos, nem mesmo ver os jogos pela TV será
possível. Dentre os 184 municípios do Ceará, Saboeiro é o que tem maior
proporção de habitantes sem energia elétrica. Ao todo, 8,9% dos
moradores da região não sabem o que é isso. É um índice alto, levando-se
em conta que 1% da população do estado não possui o serviço.
Prazeres simples, como beber água gelada ou refrescar-se com a brisa de
um ventilador, são desconhecidos para eles. "Na verdade, a gente se
contentaria com muito menos, como ter condições de ligar uma bomba para
puxar água da cisterna para a plantação", sonha Fortunato, cearense de
45 anos. Sem desfrutar de energia elétrica, a saída é fazer a irrigação
de forma manual, quebra-galho sem o mesmo resultado. É do plantio de
milho, feijão e fava, cultivo comum a todos os agricultores da região,
que sai o prato de cada dia.
Qualquer outro acompanhamento nem
sempre disponível, como frango, peixe ou carne vermelha, precisa ser
todo consumido no mesmo dia, pois não há geladeira. "Se a gente mata um
carneiro, tem que chamar os vizinhos para comer junto, senão estraga",
explica Fortunato. A solução, para alguns, é salgar a carne e lavá-la
antes do consumo. Isso não impede que o cheiro forte nas casas atraia
toda sorte de insetos.
A família de Fortunato é uma das onze de
Serra da Estrela, a cerca de 35 quilômetros da sede de Saboeiro. Para
chegar à comunidade, é necessário percorrer 10 quilômetros de estrada
carroçável. Os seis últimos quilômetros são uma subida íngreme, com
acesso somente de moto. E, ainda assim, se não estiver chovendo forte.
"Nossa vida já foi muito pior. Imagine quando não havia moto: subir com
carga, só no lombo de jumento", descreve Fortunato.
Além das
motos, que se popularizaram na zona rural do Nordeste, outra novidade
amenizou o sofrimento na comunidade: o Bolsa Família, instituído pelo
governo Lula em 2003. Todas as famílias de Serra da Estrela recebem o
benefício. No caso de Fortunato, são R$ 352 mensais, desde que mantenha
na escola seus três filhos. Eles estudam no distrito de Barrinha e
caminham os seis quilômetros serra abaixo para chegar ao colégio.
A renda certa é questão de sobrevivência onde não há emprego além da
agricultura de subsistência. "Sem esse dinheiro, enfrentar as
dificuldades de se viver sem energia elétrica seria ainda mais difícil",
expõe Fortunato. Outro programa federal, o Luz para Todos, nutriu a
esperança de que o benefício mais sonhado também chegaria a suas casas.
Mas, até aqui, tudo não passou de um desejo frustrado.
Rafael Luiz Azevedo/Agência Pública
As antenas parabólicas destoam das casas simples em Cafundó (CE)
Parte da política governamental de oferecer melhores condições de vida a
populações isoladas, o Luz para Todos levou torres de transmissão de
energia a rincões de norte a sul do país. Uma dessas linhas passa
literalmente sobre os moradores de Serra da Estrela. Instalada em 2006,
ela transporta energia entre os municípios de Jucás e Catarina. Porém,
não foi possível iluminar a comunidade de Saboeiro. "A
energia passa em cima das nossas casas, mas não pode chegar às nossas
casas. Quando instalaram as torres, explicaram que a alta tensão impedia
que um ramal descesse para cá", relata o agricultor Valdir de Oliveira,
de 48 anos. Por ironia, a luz passa tão perto e, ao mesmo tempo, está
tão longe. "Já pedimos muitas vezes energia para a Coelce [Companhia
Energética do Ceará], mas a desculpa é sempre a mesma."
A Coelce
opera o Luz para Todos no estado e, no fim de 2013, tinha como meta
instalar energia elétrica em 30 pontos de Saboeiro durante 2014 – até
março, sete obras foram finalizadas. Porém, os moradores de Serra da
Estrela terão que usar por mais um tempo velas e lampiões a gás ou
querosene durante a noite, pois a companhia não sabe onde fica a
comunidade, nem tem registro de solicitação do serviço.
Desde
seu surgimento, o programa garantiu energia elétrica a 3,1 milhões de
famílias, num total de 15,1 milhões de pessoas, segundo o Ministério de
Minas e Energia. Passados 11 anos, contudo, o acesso ao serviço ainda
não foi universalizado. Até 2000, 10,8% da população do Ceará não tinha
eletricidade, aponta o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do
Ceará (Ipece). Hoje, o número está reduzido a menos de 80 mil pessoas,
que vivem em comunidades isoladas como as de Saboeiro.
Poucos
municípios como esse sofrem tanto com o problema. Ao todo, existem lá
sete comunidades sem energia elétrica, incluindo ainda Passo Fundo,
Ninador, Queimadas, Logrador, Paraná e Serra do Papagaio. "Em pleno
século 21, isso não podia acontecer. Esse é um serviço básico para a
sobrevivência humana", opina Francisco Bezerra, agente administrativo da
Secretaria de Agricultura de Saboeiro.
O cenário já foi pior.
Antes do surgimento do Luz para Todos, quase a metade da população de
Saboeiro não desfrutava de energia elétrica. Como explica o gestor, cabe
à prefeitura fazer o levantamento das comunidades sem o serviço e
encaminhá-lo à Coelce, que realiza um estudo topográfico da região.
Dependendo da verba fornecida pelo programa, a solicitação é atendida de
imediato ou futuramente.
"O custo médio [para eletrificação] é
relativo, pois deve-se, entre outras questões, conhecer a distância
física entre o solicitante e o sistema elétrico da distribuidora",
pontua a assessoria de imprensa da Coelce. "Não é uma obra barata, é
fato. Mas é um custo que impede outros gastos lá na frente. Afinal, como
se combate o êxodo rural sem oferecer condições dignas de vida no
campo?", questiona Bezerra.
Em 11 anos, já foram investidos R$
16 bilhões no Luz para Todos. A meta do governo federal é universalizar o
fornecimento de energia elétrica no Brasil. Para isso, após a conclusão
da 3ª etapa do programa, em dezembro deste ano, será feito um novo
estudo para descobrir quem ainda ficou de fora. Cansados de esperar,
alguns cidadãos vão dando seu próprio jeitinho, algo comum aos
brasileiros.
Francimar de Oliveira conheceu a energia elétrica
numa de suas viagens a São Paulo, onde trabalhou em algumas temporadas
na construção civil. Desde 2007, ele não arredou mais o pé de Serra da
Estrela, graças ao Bolsa Família. Com suas economias, o agricultor
investiu numa tecnologia que a filha ouvira falar na escola. Por R$ 2
mil, o cearense instalou duas placas de energia solar no telhado, em
janeiro.
O sistema funciona na base do improviso. A energia
passa por fios pela parede e alimenta uma bateria de caminhão. A carga
acumulada liga a TV, que a família possuía em casa já havia dois anos,
para o dia em que chegassem os postes por tanto tempo esperados. "A
gente ainda não tem uma geladeira para realizar o sonho de beber água
gelada, mas já dá pra ter um contato com o resto do mundo", festeja
Francimar.
Torcedor do Fortaleza, sua casa era a única da região
que podia assistir ao amistoso do Brasil contra a África do Sul, que
ocorreu no dia 5 de março, em preparação para a Copa do Mundo. Na
vizinhança, ainda sem saber da novidade pertinho de casa, quem mantém
algum contato com futebol precisou se contentar com a narração via rádio
de pilha. Francimar, a esposa e os três filhos tiveram o privilégio de
ver além de ouvir.
"O dinheiro que gastei é muito para gente
pobre como eu, mas não é nada para um governo. Colocar placas dessas
aqui na comunidade sairia mais barato do que trazer postes até aqui em
cima", compara o agricultor. Diferentemente de Fortunato, ele sabe o que
significa a camisa amarelinha. E poderá vê-la em sua casa pela primeira
vez numa Copa do Mundo. Graças à sua própria iniciativa.
Copa do Mundo até em Cafundó e Escondido
Quem não esquece a primeira Copa do Mundo que viu? Para a maioria, é
uma lembrança da infância. Graças ao programa Luz para Todos, em alguns
rincões o torneio do Brasil será justamente o primeiro. Dois deles têm
nomes bem curiosos: Cafundó e Escondido. Comunidades quilombolas de
Choró, a 175 quilômetros de Fortaleza, elas receberam o serviço de
energia elétrica há três anos, depois do último Mundial.
O dia
20 de dezembro de 2011 não sai da memória dos moradores. As 35 famílias
das duas comunidades do sertão do Ceará, todas com algum grau de
parentesco, sempre mantiveram a esperança de que suas noites fossem
iluminadas. Os postes vieram do alto, por meio de helicóptero. Só assim
foi possível para a Companhia Energética do Ceará (Coelce) executar o
projeto de eletrificação do local.
Cafundó e Escondido, como
outras comunidades formadas por escravos fugidos, são duas das mais
isoladas do país. Para chegar lá, é preciso percorrer 30 quilômetros
desde a sede de Choró, sendo 10 quilômetros em estrada carroçável.
Depois, é necessário subir uma serra de 680 metros de altitude, a pé,
num terreno bastante acidentado. Dependendo do fôlego, essa caminhada
morro acima dura de uma a duas horas.
Sem acesso por meio de
carro, caminhão ou moto, as comunidades viveram praticamente esquecidas
até o século 21. O Bolsa Família e a chegada da energia elétrica
ajudaram a frear o êxodo local. Os moradores passaram a contar com uma
renda mensal, que complementa o plantio da agricultura de subsistência, e
a desfrutar dos prazeres da tecnologia.
"A vida aqui melhorou
muito. No meu tempo, eu trabalhava um dia inteiro para conseguir uma
xícara de açúcar para a garapa deles [água com açúcar, bebida comum
entre os pobres do interior do Nordeste]. Hoje, um dia de trabalho rende
um saco de açúcar para o leite dos filhos deles", compara o agricultor
Dionísio de Oliveira, de 48 anos, um dos moradores que receberam da
Coelce um aparelho de TV.
Não que o acesso a bens de consumo
tenha resolvido todos os problemas. A distância de tudo ainda é um
empecilho. A escola municipal de Cafundó atende dez crianças no ensino
fundamental 1. Os mais crescidos, do fundamental 2, acordam às 3h30 para
uma caminhada de duas horas morro abaixo até o distrito mais próximo,
Conceição. Já os alunos de ensino médio viajam mais 30 quilômetros de
ônibus até a sede de Choró.
"Não é à toa o nome. As pessoas
vivem escondidas mesmo", ri José Arimateia da Silva, de 37 anos. Nascido
em Cafundó, o ex-agricultor desistiu da vida ao lado dos familiares em
2010. Vendeu a casa a um parente, por R$ 200, e alugou outra na sede de
Choró, na época por R$ 70. "Cansei de subir e descer aquilo ali. É muito
desgastante. Imagine então o sofrimento de crianças e idosos", diz o
vendedor de picolé.
Apesar do físico mirrado comum aos demais
moradores, Teté, como é conhecido, era sempre requisitado para fazer
força. Quando alguém fica doente, os familiares ou amigos precisam
descê-lo carregado em redes de dormir. "Uma vez, após uma briga, um
homem furou outro (esfaqueou). No desespero, desci a serra em 10 minutos
para chamar uma ambulância, enquanto levavam ele carregado", relembra.
Na base da serra, há uma placa já desgastada que informa o projeto de
eletrificação. A obra custou R$ 797 mil ao programa Luz para Todos. Para
que pudessem ser carregados por helicóptero, os postes foram fabricados
em fibra de vidro. Não há iluminação pública, e, por isso, os clientes,
todos de baixa renda, pagam em média R$ 5 por mês. A medição é feita
por um dos moradores, que também cuida da escola.
A chegada da
energia elétrica garantiu outra benesse dos novos tempos. O uso de
telefones celulares, que em certas regiões das comunidades captam sinal
da TIM e da Claro – serra abaixo, também é possível telefonar com chip
da Oi. O município ainda não dispõe de tecnologia 3G, mas sim a antiga
2G. Quando se está navegando na internet, uma chamada para o telefone
derruba a conexão.
Apesar do horizonte aberto pela tecnologia,
ainda existe gente sem contato com o exterior da comunidade. O
agricultor Antônio Preto, de 74 anos, por exemplo, não faz ideia do que
seja seleção brasileira. "Minha vida sempre foi de casa pra roça, da
roça pra casa", justifica. Hoje, porém, ele virou exceção. Quase todos
os moradores possuem TV, e quem não tem pretende ver os jogos na casa de
algum vizinho.
"A primeira Copa do Mundo que vi foi em 2010.
Desci até a comunidade de Fonte Nova. Foram duas horas de ida e mais
duas de volta", relata o agricultor Geane de Oliveira, de 26 anos. "Foi
tanto sacrifício que aquele jogo da seleção brasileira foi o único que
assisti." Ninguém merece mesmo. Nem as famílias de Cafundó e Escondido,
nem as 242 mil ainda sem energia elétrica no Brasil.
fonte Uol
Esse é o País da copa um país de ultima geração (irônias claro)
Reviewed by
Bastidores da net
on
maio 23, 2014
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