Copa é exemplo de irresponsabilidade fiscal, diz formulador do Plano Real
Imagem: Daniel Marenco / Folhapress |
O economista
Gustavo Franco é torcedor do Botafogo e está acompanhando os jogos da
Copa do Mundo. Um dos formuladores do Plano Real, que completa 20 anos
durante o Mundial, ele diz que o "futebol se tornou uma metáfora exata
das causas da inflação" no Brasil.
"Alguns
estádios foram construídos com um dinheiro que não existe, aumentando a
dívida do governo. Se queríamos exemplos de irresponsabilidade fiscal
que todos entendessem, a Copa foi um espetáculo", disse Franco, que
presidiu o Banco Central de 1997 a 1999, à Folha.
Próximo ao
PSDB, ele defende que o próximo governo faça uma discussão
"transparente" sobre o orçamento e critica a administração Dilma
Rousseff. "É preciso fazer quase uma comissão da verdade para saber o
que houve com as contas públicas."
Franco diz que a
alta de preços preocupa, mas nada comparável à hiperinflação que o
Plano Real derrubou. Para o economista, o país fez progressos
institucionais contra o "comportamento inflacionista dos políticos".
Vinte anos depois do lançamento do real, a inflação ainda preocupa?
A inflação é
uma doença que vai nos ameaçar sempre. Infelizmente tivemos um episódio
crítico, que foi a hiperinflação. Por isso, nosso organismo é mais
sensível que o de outros países a essa doença. O que significa que
precisamos ter mais cautela pelo resto da vida. É como o alcoolismo: não
existe cura, só abstinência.
A inflação se aproxima do teto da meta estabelecida pelo governo. É preocupante?
Não é
comparável a 1992 e 1993, mas é grave. A experiência dos vizinhos
demonstrou que uma inflação, que pode até parecer pequena, se torna
desestabilizadora.
Na Argentina, a
situação degringolou quando a inflação chegou a 15%. Foi uma esbórnia
de controle de preço e ocultação de informação. Na Venezuela, a inflação
subiu para 60% e, retirados os controles, já se parece com
hiperinflação. É uma inflação dolorida, porque gera escassez.
Esses países
demonstraram que existe uma fronteira, entre 10% e 15%, que é muito
perigosa. Será uma tragédia histórica se a inflação escapar e entrarmos
na trajetória de Argentina e Venezuela.
O Brasil corre esse risco?
O risco existe,
mas é pequeno. Temos progressos institucionais que nos defendem. O
Banco Central hoje tem outro status. A lei de responsabilidade fiscal
representou uma tomada de consciência da população da importância de
proteger a moeda e as finanças públicas. É isso que nos salva hoje de um
governo que, na ausência dessas condições, sabe-se lá o que estaria
acontecendo.
Como o próximo governo deve controlar a inflação?
O próximo governo precisa recompor os pilares de uma economia sadia, que foram abandonados por questões ideológicas.
Temos que falar
da responsabilidade fiscal em todas as suas dimensões e não apenas em
superavit primário. É preciso fazer quase uma comissão da verdade para
saber o que houve com as contas públicas nos últimos tempos.
O segundo ponto
é o câmbio flutuante. O que está em jogo é o relacionamento do Brasil
com o mundo. Com o Plano Real, abrimos o país para a economia
internacional. Recentemente houve um recuo perigoso em direção a ideias
dos anos 1950.
Também existia
no Brasil a percepção de que o governo gostava da liderança empresarial
no crescimento. Hoje o governo tem reputação de hostilidade ao setor
privado.
O Plano Real se baseou em juros altos para estabilizar a inflação. Como resolver isso?
Não concordo
com a premissa. O Plano Real foi calcado em fundamentos macroeconômicos,
fiscais, monetários e cambiais. Para isso utilizou todas as âncoras
disponíveis: política monetária, fiscal e cambial.
A política
monetária foi usada de forma pesada em alguns momentos, quando a
política fiscal não pode ser utilizada. A política cambial também.
Depois que a situação fiscal melhorou em 1997 e 1998, foi possível
mudar.
Como baixar os juros?
Esse dilema
ficou na cabeça do governo, que acha que a única maneira de reduzir a
inflação é subir os juros. É perfeitamente factível reduzir os juros se
houver uma política fiscal correta.
O atual governo
tentou reduzir os juros sem responsabilidade fiscal e teve que voltar
atrás. Esse é o governo dos juros altos tanto quanto qualquer outro.
Qual foi o principal mérito do Plano Real?
Reduzir uma inflação que chegou perto de 12.000% ao ano para 1,6% em 1998, sem praticamente nenhuma alteração do desemprego.
E qual foi o principal defeito?
É difícil
apontar um defeito no plano de estabilização. Só que a estabilização não
resolve todos os problemas. Muitas reformas poderiam ter sido feitas,
mas foram interrompidas. Só que aí entramos em outro processo, que é a
recomposição do crescimento.
Até a desvalorização em 1999, vocês mantiveram o câmbio fixo por tempo demais?
O câmbio
valorizado não foi um desejo, mas um problema que tivemos de lidar. Até
perto da crise da Rússia (1998), o Brasil sofria uma enxurrada de
dólares. A dificuldade de fazer o câmbio desvalorizar era grande
–situação parecida com o que viveu o governo Lula em 2008.
Tínhamos duas
alternativas: deixar flutuar o câmbio e fazer uma maxidesvalorização, ou
sustentar a política cambial, fechar um acordo com o FMI, deixar o
tumulto passar, e fazer uma flutuação fora da crise. Escolhemos a
segunda opção.
A experiência
recente do PT destrói o argumento de que estávamos mantendo o câmbio
artificialmente valorizado. O dólar estava quase em R$ 1,50 quando veio a
crise de 2008 e bateu em R$ 2,50.
Você teve dúvidas de que o Plano Real funcionaria?
Tive dúvidas e
certezas todo o tempo. Nesse ramo, você tem convicções muito fortes, mas
não controla todas as variáveis. A dúvida é saudável porque te deixa
mais vigilante aos imprevistos. E por mais esperto que esteja, o
imprevisto sempre vai ser pior do que você esperava.
Que tema hoje mereceria um novo Plano Real?
É preciso
continuar o processo que começamos. O brasileiro chegou perto de
entender as causas da inflação e estabelecer instituições que evitem o
comportamento inflacionista dos políticos.
Nos últimos
anos, esse comportamento voltou. A inflação começou a subir e a reação
popular foi forte. O futebol ajudou muito porque se tornou uma metáfora
exata das causas da inflação.
Nada pode ser
mais ilustrativo da forma como as finanças públicas são conduzidas do
que os estádios superfaturados e a discricionariedade de como um
político determina que um banco federal coloque R$ 1 bilhão para
construir um estádio do nada.
Mas os manifestantes pediam para gastar em saúde e educação e não para economizar...
Esse debate é
maravilhoso e deveria ocorrer no orçamento. É aí que as pessoas devem
dizer que querem escola e hospital em vez de estádio. Isso confrontado
com a disponibilidade de dinheiro.
Em muitos
casos, os estádios são construídos com dinheiro que não existe,
aumentando a dívida do governo. Se queríamos exemplos de
irresponsabilidade fiscal que todo mundo entendesse, a Copa foi um
espetáculo.
Cada estádio
é um exemplo de um rombo de mais ou menos R$ 1 bilhão. Se esse dinheiro
existia, por que não foi utilizado para outra coisa?
O próximo
governo precisa de uma proposta de orçamento transparente. Nunca
organizamos direito nosso orçamento, que é o centro econômico de
qualquer democracia digna desse nome.
Raquel Landim
Folha de S. Paulo
Editado por Folha Política