Grafiteiros desenham a crise em São Paulo
'troco iPhone 6 por dois litros de água'
Avenida 23 de Maio concentra murais que retratam crise no abastecimento.
Além das novas obras, artistas levaram intervenções até o Cantareira.
A falta d'água chegou aos muros da cidade de São Paulo em uma frase irônica: "troco iPhone 6 por dois litros d'água". O detalhe desenhado em um cacto é apenas parte do resultado de um trabalho realizado por dez artistas desde o começo do ano e inaugurado no domingo (1°) na Avenida 23 de Maio, na Zona Sul de São Paulo
Ativista das causas ambientais, o pintor de rua Thiago Mundano é um dos artistas que concentrou esforços no retrato da crise. Em um trecho da obra na Avenida 23 de Maio, “retirantes paulistas” desenhados por Mundano recorrem aos cactos para conseguir água. Entre as plantas aparece uma urna eletrônica, clara crítica ao posicionamento dos políticos frente ao problema.
Ao lado do trabalho de Mundano, o grafiteiro Felipe Arantes, o Iskor, apresenta uma pessoa se afogando em um mar de excrementos. Sobre a face agonizante surgem garrafas. “Cada uma delas tem uma palavra, como lucro, negligência e corrupção. Ela está escorrendo líquido preto que está sugando o personagem”, disse o grafiteiro. “Estamos sem água porque estamos afogados nisso.”
Na mesma via há outros grafites sobre o tema. As colunas que sustentam o Viaduto Beneficência Portuguesa, por exemplo, viraram telas para quatro artistas. Paulo Ito retratou um político ajoelhado no solo de uma represa seca, implorando para que uma banana de dinamite não exploda em sua cara.
Do outro lado da avenida, também em uma pilastra, os grafiteiros Apolo Torres, William Mophos e Felipe Borges, conhecido como 3ªVisão, retrataram um ciclista, veículos e um cachorro enfrentando uma enchente.
Segundo Torres, os alagamentos e a estiagem são problemas que têm raiz comum: o desrespeito à natureza.
“Isso é consequência não só dos governos atuais, mas de políticas públicas antigas, como fazer ruas sobre rios, canalizar córregos, não aproveitar a água de maneira inteligente, esse incentivo ao carro acima de tudo.”
Os artistas são pessimistas quanto ao futuro. “Não tem solução em curto prazo. Não é de uma hora para a outra que faremos um milagre”, disse Torres.
“São Paulo viveu 461 anos de destruição de tudo ao redor. Óbvio que isso não ia chegar a lugar algum. O choque está chegando mais cedo. Algo inédito. A gente tem que passar por esse choque”, acrescentou Mundano. “Me parece um processo irreversível. A situação vai ficar feia”, concluiu Iskor.
Intervenções na Cantareira
O artista Mundano chegou a ir até a Represa Atibainha, uma das que compõem o Sistema Cantareira, e ficou impressionado com o que viu. “Dá um desespero quando se chega lá e vê ao vivo a situação.”
O artista Mundano chegou a ir até a Represa Atibainha, uma das que compõem o Sistema Cantareira, e ficou impressionado com o que viu. “Dá um desespero quando se chega lá e vê ao vivo a situação.”
Em meio ao solo rachado onde há dois anos havia água em abundância, Mundano decidiu plantar um cacto com torneiras ao lado dos espinhos. Segundo ele, além de representar a seca, a planta remete ao povo brasileiro por sua força e vigor em ambientes pouco propícios à vida. “Ele continua em pé lá, como um rei da Cantareira.”
O artista também pintou a carcaça de um carro abandonado na represa. O veículo - que passou anos submerso, mas voltou a aparecer por causa da estiagem - foi transformado em uma espécie de placa que recepciona os visitantes com a frase “Bem-vindo ao Deserto da Cantareira”. A intervenção também foi utilizada em um clipe do bloco de carnaval independente “Sereias do Cantareira”.