Saiba como surgiu os dias de terror em Vitória, No Estado do Espírito Santo. Após a PM ter entrado em greve


A sexta-feira de Graziela começou com uma enxaqueca.
Aos 32 anos, casada com um policial militar e sem filhos ("só não temos ainda porque não cabe no orçamento", diz), a capixaba tentava se recuperar da dor de cabeça em casa quando recebeu a ligação de uma amiga falando sobre um protesto que oito mulheres, também casadas com agentes de segurança, e quatro de suas crianças faziam diante do 2ª Companhia do 6º Batalhão da PM em Serra, na Grande Vitória.
"Assim que soube, me passaram o link de um grupo que formaram no Facebook com todas as mulheres de policiais militares do Estado. E me colocaram em um grupo de WhatsApp. Eu logo comecei a me mobilizar e formei o grupo que iria para o batalhão do meu marido", disse à BBC Brasil.
"Há anos guardamos isso dentro de casa, fica do portão para dentro. Agora, elas explodiram e, como a gente sofre da mesma coisa, todas as outras se mobilizaram pela mesma causa."
Seu marido foi comunicado pelo telefone do que estava prestes a ocorrer: "Eu liguei para ele e avisei que estava indo protestar. Ele me disse 'você não vai', mas eu vim mesmo assim".
Graziela agora é porta-voz oficial do Movimento das Famílias PMES, que protesta diante de todos os 19 batalhões e mais 10 companhias independentes da PM do Espírito Santo e impede, há três dias, a saída de viaturas para fazer o policiamento das ruas do Estado.
Mesmo responsável por falar com a imprensa, ela não divulga o sobrenome, temendo represálias a seu marido. "Pode colocar que meu nome é Graziela Família PMES. Esse é o meu sobrenome agora", afirma.
Os policiais militares são proibidos pelo Código Penal Militar de fazer greves ou paralisações. A pena por fazê-lo pode chegar a dois anos.
Desde que o bloqueio começou, o Espírito Santo vive dias de caos, com aumentos de mais de 1000% nos índices de homicídios e crimes contra a propriedade, segundo o vice-presidente do Sindicato da Polícia Civil, Humberto Mileip.
O governador em exercício do Estado, César Colnago - o titular, Paulo Hartung, está internado em São Paulo -, afirmou que o governo federal autorizou o envio imediato de 200 homens da Força Nacional para fazer o policiamento ostensivo nas cidades. As Forças Armadas também serão mobilizadas.
"De forma alguma vamos aceitar esse tipo de atitude que é deixar a população desguarnecida de um serviço que é essencial, o da segurança pública."
Em entrevista coletiva no fim da tarde, o ministro da Defesa, Raul Jugmann, afirmou que a Força Nacional já está nas ruas de Vitória.
Mulheres em Feu Rosa, onde começou a mobilização© Divulgação Movimento das Famílias PMES Mulheres em Feu Rosa, onde começou a mobilização

Violência

Durante o fim de semana, relatos de capixabas nas redes sociais falavam em saques, arrastões, queima de ônibus e tiroteios nas ruas, a maioria deles com a hashtag #ESpedesocorro.
Na segunda-feira, escolas, postos e saúde, estabelecimentos comerciais e órgãos públicos em Vitória e em outros municípios fecharam as portas. A circulação de ônibus foi interrompida às 16h.
"Vi até homicídio em plena luz do dia nas redes sociais", disse o leitor da BBC Brasil Juka Alvez no Facebook. 

"Guarapari também está toda parada, muitos comércios fechados, (nas) escolas as aulas foram suspensas. Lojas saqueadas, vez em quando se ouve tiros... Tá tenso!", afirmou a leitora Claudia Buzzulini.
Entre o início da paralisação e as 17h desta segunda-feira, foram registrados a 58 homicídios no Estado, segundo o Sindicato dos Policiais Civis do Espírito Santo.
Segundo o vice-presidente do sindicato, Humberto Mileip, o número é mais de 1100% mais alto do que a média de homicídios por fim de semana no mês de janeiro - foram cerca de cinco em cada um deles. 
"A informação sobre os homicídios é oficial e registrada. A grande maioria deles são relativos a disputas de áreas por gangues de tráfico de drogas", disse à BBC Brasil.
"Não sei te dizer a estatística de crimes patrimoniais, mas se eu te disser que houve aumento entre 800 e 1000% seria pouco. Em todos os municípios da grande Vitória e muitos do interior não há uma viatura sequer nas ruas e a bandidagem está solta fazendo saques, colocando fogo em ônibus. Eu diria que temos mais de 10 municípios em Estado de calamidade aqui."
Para o advogado Clécio Lemos, professor de Direito Penal e criminologia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenador estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o momento é inédito na história do Estado e evidencia a fragilidade da segurança local.
"Isso nunca tinha acontecido em Vitória, essa selvageria à luz do dia. Vivemos uma guerra civil silenciosa em que, no primeiro descuido, alguém te ataca. Como isso é paz?", disse à BBC Brasil.
"É inegável que os policiais ganham mal e passam por uma insegurança absurda. Eu não gostaria de trabalhar um dia da minha vida como policial. Mas também precisamos nos perguntar que tipo de sociedade é essa que precisamos vigiar tanto."
Moradores diante de loja saqueada em Vitória, ES, no dia 6 de fevereiro© Reuters Moradores diante de loja saqueada em Vitória, ES, no dia 6 de fevereiro

'Passando fome'

Nas faixas que confeccionou na tarde de sexta, Graziela escreveu: "Pior salário do Brasil", "Mais dignidade para os nossos PMs" e "Se eles não podem, eu posso". 
As frases resumem o discurso dos familiares que, por sua vez, ecoa as reclamações do major Rogério Fernandes Lima, presidente da Associação dos Oficiais Militares Estaduais do Espírito Santo.
"Nosso soldado ganha por volta de R$ 2.640, mas a média nacional é R$ 3.989. Nossa defasagem salarial tem mais de 7 anos e nos últimos 3 anos não tivemos nem a revisão geral anual. As perdas que acumulamos em relação à inflação ultrapassam 43%", disse à BBC Brasil.
"Nosso policial militar está passando fome. Não adianta o governo pregar que o Espírito Santo está fazendo austeridade fiscal enquanto o policial é sacrificado."
Lima afirma que as associações e sindicatos de policiais não articularam os protestos, que "nasceram espontaneamente de esposas, familiares e amigos dos PMs".
"As associações de classe não são irresponsáveis, mas nos solidarizamos com essas mulheres. Estamos há anos tentando negociar com um representante do Estado e nunca há solução."
A BBC Brasil tentou contato com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Civil até a publicação desta reportagem, sem sucesso.
Major Rogério Lima© Arquivo pessoal Major Rogério Lima
Em vídeo na página do governo do Espírito Santo no Facebook, César Colnago diz ter suspendido as negociações com as manifestantes "até o retorno da normalidade".
Ele disse ainda que "a crise fiscal nesse país é violenta, fruto da crise econômica" e que mantém em dia o pagamento dos servidores "a duras penas".
Segundo o major, faltam coletes à prova de balas para os policiais e a frota de viaturas está em más condições de uso, sem renovação desde 2013. O hospital da PM, diz, também está "sucateado".
Uma liminar do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que considerou ilegal a paralisação, fixou uma multa diária de R$ 100 mil caso as associações de policiais militares não cumpram a ordem.
Na decisão, o desembargador Robson Luiz Albanez diz que é a mobilização é uma greve "velada" da PM, e afirma que "um piquete realizado por familiares e amigos não pode impedir a saída e entrada de viaturas nas unidades policiais, muito menos pode motivar o seu aquartelamento sob o argumento de que estão impossibilitados de exercerem suas atividades".
O major Lima, no entanto, diz que a sugestão é "leviana". "O Estado mostra intransigência que tem em negociar com seus servidores."

Revezamento

Desde o início do protesto, grupos de 20 a 50 mulheres se revezam dia e noite diante dos batalhões da PM no Estado.
Mariana, de 25 anos, é uma das que organiza o contingente de familiares - que inclui, ocasionalmente, crianças e alguns idosos - nos locais, para garantir que haverá pessoas suficientes para impedir a saída dos agentes de segurança.
"Ficamos sentadas na porta do batalhão, observando os movimentos dos que entram para o trabalho e impedindo a saída, porque diversas vezes eles tentam sair. Já fizemos corrente humana, já conversamos com comandantes, majores que tentaram negociar para que fossem liberadas algumas viaturas para fazer o policiamento das ruas. Mas queremos conversar com quem vai resolver o problema", diz.
"A ocupação pegou muitas pessoas de surpresa, inclusive a mim. Quando soube do protesto, fiquei em estado de choque. Depois, veio uma compulsão de fazer parte e mostrar para a população o que a gente passa."
Esposas e familiares protestam diante de batalhão da P© Divulgação Movimento das Famílias PMES Esposas e familiares protestam diante de batalhão da P
Na sexta-feira, quando começaram a se mobilizar, as mulheres chegaram a ficar na chuva, mas ganharam tendas de comerciantes locais.
"Também temos recebido muita doação de alimentação e água dos que apoiam a nossa causa e estão sentindo na pele o que é ficar sem o policiamento", afirma Mariana.
Mesmo com as negociações suspensas pelo governo, ela diz, o objetivo é ficar até serem ouvidas.
"Essa euforia não é só minha, é de todas as mulheres que fazem parte do ato. Vimos mulheres grávidas e com recém-nascidos nas portas dos batalhões. Algumas precisam trabalhar ou levar os filhos na escola, mas voltam para cá."
"Ouço muita gente dizer que os familiares não estão preocupados, porque os PMs fazem nossa segurança. Mas o marginal sabe onde o policial mora, ele atenta contra as famílias dos policiais. Para nós, o local mais seguro é a porta do Batalhão."
*Fonte Ricardo Senra, da BBC Brasil em São Paulo
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