"Queremos uma CPI da Amazônia no Congresso dos EUA", dizem acadêmicos Brasileiros
Não vai demorar muito tempo, para que tirem a Amazônia do povo Brasileiro.
Durante a disputa eleitoral contra Donald Trump, o então candidato Joe Biden colocou a Amazônia no centro do debate. Reiteradamente, o democrata ressaltou a importância da floresta tropical para o planeta e anunciou planos de aportes financeiros para apoiar sua preservação.
Na presidência, Biden terá o desafio de provar com ações concretas o seu comprometimento com o bioma. A pressão pelo cumprimento das promessas cresceu nesta semana, quando a Rede dos Estados Unidos para Democracia no Brasil fez chegar ao presidente um dossiê de 31 páginas que pede a suspensão de acordos comerciais e políticos com o governo de Jair Bolsonaro.
Entre outras medidas, o documento pleiteia que o novo governo dos EUA encerre o apoio financeiro a atividades relacionadas ao desmatamento na Amazônia. A extensa lista de recomendações tem por objetivo garantir que a administração do democrata não endosse violações socioambientais observadas atualmente no Brasil.
Apoiada por mais de 150 acadêmicos das principais universidades dos EUA, ONGs e entidades como a Amazon Watch e a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), a U.S. Network for Democracy in Brazil deriva de uma mobilização iniciada em 2018, após a eleição de Jair Bolsonaro.
O grupo é coordenado pelo historiador James Green, de 69 anos. Antes de se tornar um conceituado brasilianista, ele se engajou como ativista, nos anos 1970, em atividades de denúncia das torturas praticadas pela ditadura militar brasileira.
Nesta entrevista à DW Brasil, Green reconhece que a Amazônia e a agenda ambiental ocupam, hoje, o lugar que os direitos humanos tiveram naquele período como principal plataforma de sensibilização da opinião pública dos EUA sobre a situação vivida no Brasil. Aumentar a visibilidade das violações em curso é um dos objetivos da elaboração do dossiê.
Ele comenta que, em meio à gestão da pandemia e à divisão política no Senado, não se sabe quando Joe Biden terá tempo para ler o documento entregue pelas mãos de Juan Gonzalez, principal responsável por políticas sobre a América Latina no novo governo e assessor de confiança do presidente desde que trabalharam juntos na administração de Barack Obama.
Até lá, o grupo aposta em ações junto a parlamentares. O objetivo é intensificar contatos em curso e pleitear a criação de uma CPI da Amazônia no Congresso dos EUA.
“A ideia é investigar quais são as medidas corretas que EUA devem implementar para fazer valer as leis em vigor que já proíbem certas irregularidades, como a importação de madeira ilegal. Queremos também avaliar o que podemos fazer como país para respeitar a legislação brasileira que defende a Amazônia e se destina ao combate e prevenção do desmatamento”, afirma.
O documento chegou às mãos de Joe Biden por intermédio de Juan Gonzalez, homem de confiança do presidente desde a administração Obama e responsável por políticas sobre a América Latina no novo governo. É um indício de que as recomendações serão levadas em conta?
Nós não temos notícias de que o presidente já leu o documento. Sabemos que o material está chegando a Biden por várias pessoas próximas a ele, dentre elas assessores, secretários e membros do gabinete. Acreditamos que vai ser considerado pelos especialistas do governo dele. Mas, desde já, achamos interessante a receptividade de pessoas na administração dele e no Congresso. Vários senadores e congressistas que têm trabalho de varias maneiras, ao longo dos últimos quatro anos, para levantar questões sobre o Brasil em Washington.
Isso é muito importante, porque o governo brasileiro tem seus esforços e lobby sobre a realidade por meio de sua embaixada e da atuação do Itamaraty. É uma contra-narrativa sobre o que está acontecendo no Brasil. Inclusive, Bolsonaro e o embaixador enviaram comunicações cínicas ao presidente Biden, dizendo que o presidente do Brasil defende o meio ambiente e os direitos humanos. São tentativas de encobrir e falsificar a realidade brasileira para o público americano e a administração dos EUA. É muito significativo que tenhamos um apoio amplo de pessoas que têm um conhecimento muito profundo sobre o Brasil nas melhores universidades dos EUA, bem como das organizações mais importantes nessa área.
Em 2020, parlamentares dos EUA chamaram Bolsonaro de “pseudoditador” e classificaram acordos entre os dois países como “um tapa na cara do Congresso”. Qual pode vir a ser o peso de uma pressão maior do Legislativo sobre as ações de Biden referentes ao Brasil?
Nosso grande desafio é o pouco conhecimento que as pessoas têm sobre o Brasil aqui nos EUA. Há uma série de estereótipos sobre o país, mas sem uma noção profunda sobre sua história, cultura e realidade. Portanto, um de nossos objetivos é informar as pessoas, tanto o público em geral como os congressistas, para realmente isolar o governo atual e defender os movimentos sociais populares no Brasil e as conquistas logradas ao longo dos últimos 40 anos, desde o retorno à democracia. É também uma tentativa de apoiar as forças que estão lutando por um país mais justo e igualitário.
Nesse sentido, o Congresso pode cumprir um papel simbólico de fazer declarações ou ações legislativas concretas para isolar as forças autoritárias, fascistas e antidemocráticas no Brasil. Nosso trabalho é muito ligado aos movimentos sociais. Somos uma rede apartidária, democrática e descentralizada, mas que está muito em diálogo com as forças democráticas brasileiras que estão lutando por um países mais justo e igualitário. Parte do nosso trabalho no Congresso é de informar os deputados, criar laços e alianças.
Há receptividade aos debates sobre o Brasil?
Na Câmara dos Deputados, por exemplo, existe um bloco de afrodescendentes com quem há um diálogo sobre a maneira como os afro-brasileiros sofrem com violência e discriminação no país. Trabalho semelhante é feito com deputados que se preocupam com os direitos indígenas nas Américas. Inclusive, nós tivemos um trabalho muito importante com a Debra Haaland, nova ministra do Interior, que trata das terras indígenas federais nos EUA, além de outras pessoas ligadas às questões gerais de direitos humanos e justiça social. Em parte, o objetivo é criar laços com esses deputados e senadores para abrir possibilidades de ações legislativas que possam modificar essa realidade.
É importante frisar que não falamos do lugar de cidadãos de um país maravilhoso. Nós temos aqui um movimento de milhões de pessoas que apoiam ideias reacionárias, e até fascistas. Houve uma insurreição em janeiro, e o ex-presidente está sendo alvo de um processo de impeachment por essa razão. Não estamos dizendo que a democracia americana é melhor. Isso é um discurso histórico totalmente falho. Entendemos nossas lacunas, mas enquanto especialistas em nossas áreas, com formação sobre a realidade brasileira ou ligação forte com o país, sentimos obrigação de levantar nossas vozes e declarar claramente que o governo atual dos EUA não deve ter relações normais com um governo que está cometendo graves violações de direitos humanos e outras medidas que não favorecem o povo brasileiro.
No documento, vocês afirmam que os EUA têm “obrigação moral e interesse prático” em se opor a inciativas do atual governo brasileiro. Por quê?
Sabemos que no passado, infelizmente, o governo democrata do Lyndon Johnson apoiou o golpe de 1964. Em 1962, a CIA ajudou a financiar campanhas contra o governo brasileiro com cerca de 5 milhões de dólares, que representam 30 milhões em valores atuais. Houve uma interferência direta do governo americano para derrubar um governo democraticamente eleito e a democracia no Brasil. Nesse sentido, o governo atual pode ter uma postura diferente ante o Brasil, de defender a democracia em vez de um movimento autoritário. Se o governo dos EUA, seja democrata ou republicano, afirma em seu discurso que defende a democracia, temos a obrigação moral de ir contra regimes autoritários, mesmo que não façamos isso dentro do país.
Concretamente, nosso objetivo é acabar com o apoio financeiro a medidas e atividades em áreas que contrariam os interesses brasileiros. Um exemplo é a reivindicação para que se interrompa a importação de madeira brasileira e demais produtos extraídos da floresta amazônica ilegalmente, uma vez que incentivam o desmatamento. Esse mercado ilegal de madeira precisa ser eliminado. Já existem leis americanas que proíbem esse tipo de importação, bem como uma legislação brasileira contra o desmatamento que está sendo violadas pelo governo atual.
Durante a ditadura militar, o apelo à situação dos direitos humanos no Brasil era o principal fator de mobilização internacional contra o governo. Na oposição a Bolsonaro, essa agenda deu lugar à Amazônia e a defesa do meio ambiente?
Com certeza. O grande desafio de levar adiante as denúncias de violações nos anos 1960 e 1970 era a capacidade de circular informação sobre o Brasil. Hoje em dia, o acesso à informação é imediato. O nosso relatório mesmo foi massivamente divulgado, em muito pouco tempo. Apesar da saturação gerada pelo volume de informações que circulam nas redes, isso nos ajuda muito, hoje, a dar visibilidade para a questão mais importante da atualidade, que é a destruição da floresta amazônica. No segundo debate da campanha eleitoral, Biden declarou claramente que é uma preocupação dele. Esperamos agora que ele tenha uma política correta de enfrentamento dessa realidade. É uma preocupação que se observa em nível mundial, que já está na consciência das pessoas. Vamos lutar pra ter uma CPI no Congresso dos EUA sobre a Amazônia e o meio ambiente, bem como organizar outras atividades no futuro para falar mais sobre essa realidade.
Chama atenção que, quando Bolsonaro foi eleito, todos os canais de televisão que comentavam a lista de governos autoritários pelo mundo incluíram Bolsonaro na lista. Então, mesmo quem não conhece muito sobre o Brasil sabe que tem um governo autoritário no país, com um presidente que se chama Jair Bolsonaro. Isso está circulando entre intelectuais e jornalistas que têm feito reportagens de grande circulação sobre essa realidade, seja na imprensa inglesa, francesa ou israelense. Esse cenário cria possibilidades muito melhores do que nos anos 1970, quando saíam notícias esparsas sobre o tema e poucos sabiam o nome do ditador de plantão.
Quais seriam os objetivos dessa CPI no Congresso dos EUA?
A ideia é investigar quais são as medidas corretas que EUA devem implementar para fazer valer as leis em vigor que já proíbem certas irregularidades, como a importação de madeira ilegal. Queremos também avaliar o que podemos fazer como país para respeitar a legislação brasileira que defende a Amazônia e se destina ao combate e prevenção do desmatamento. O enfoque se dirige às relações comerciais, para que se respeite não só o meio ambiente, mas também as leis trabalhistas no Brasil. É difícil e delicado impor esses critérios, mas são estas as condições que esperamos ver em discussão no Congresso daqui. Não para impor, mas respeitar as leis e a igualdade das nações.
Além de proteger a floresta, nós precisamos defender os povos indígenas das Américas, ao longo de séculos vítima de um processo de genocídio pelos brancos. Isso envolve tanto os EUA como o Brasil. Portanto, temos que nos opor claramente a medidas que violem territórios dos povos indígenas, como felizmente o Biden fez recentemente ao vetar um canal de petróleo do Canadá para os EUA cuja obra estava quase concluída por atravessar territórios indígenas e pelo risco de impacto ambiental. A medida havia sido muito apoiada pelo governo de Trump e empresários petrolíferos. Queremos também defender o povo indígena brasileiro, que está neste momento lutando contra as pessoas que estão invadindo seus territórios para exportar madeira, fazer mineração e outras atividades que contrariam esses interesses.
Fora da agenda ambiental, que outro tema merece destaque?
Um exemplo importante é a base espacial de Alcântara (MA), onde os EUA têm um acordo de muitos anos com o Brasil para realizar nesse espaço investigações científicas e de questões relacionadas a projetos espaciais. Isso está provocando o deslocamento de comunidades quilombolas que, no passado, conduziram uma série de negociações e lutas para estabelecer direitos de ocupar um território agora utilizado pelo governo brasileiro com apoio dos EUA devido a esse acordo.
Conclamamos nosso governo a não financiar nenhum projeto que possa expulsar povos quilombolas. Inclusive, parte desses deslocamentos e negociações foram negociados durante a ditadura militar, quando não havia a possibilidade de uma articulação democrática em torno dos direitos desses povos. É mais um exemplo de como o dinheiro americano está sendo utilizado para uma atividade no Brasil que julgamos incorreta. Não somos contra acordos, achamos perfeito que os dois governos negociem, mas é preciso que meio ambiente, os direitos laborais e os direitos humanos sejam considerados. Não é correto fazer medidas com o Brasil que violem esses direitos democráticos, dos quais os EUA se reivindicam defensores em todo o globo.
Embora os EUA se posicionem historicamente em favor da democracia, dos direitos humanos e da preservação ambiental, a influência do poder econômico sempre comprometeu a real efetivação desses discursos. As sinalizações iniciais de Joe Biden indicam uma busca maior por coerência no novo governo?
Esta é uma questão muito importante. Eu não tenho ilusões sobre a administração de Biden. Ele representa o “Centrão” do Partido Democrata: tem um histórico de negociações e boas relações com os partidos republicanos. E podemos conversar sobre uma série de medidas do governo Obama, no qual Biden foi vice, com as quais não estou de acordo — dentre elas, o grampo da ex-presidente Dilma Rousseff, para mim uma grande violação dos direitos dela e várias pessoas de sua administração. Porém, o governo Trump foi tão desastroso por quatro anos, que o Biden conseguiu reunir em uma frente única todos os setores democráticos, inclusive aqueles mais à esquerda e progressistas. Ele foi defendido especialmente pela base do partido, muito alicerçada na comunidade negra, grandes setores de latinos e brancos progressistas ou liberais que realmente não aguentavam mais a política do governo de Trump. Nesse sentido, Biden está muito atento e fez várias promessas de manter essa base dele.
Isso se observa na composição de seu gabinete, o mais diverso da história do país. É um contraste grande com o ministério de Michel Temer ao assumir, formado exclusivamente por homens brancos. É claro que estamos falando de coisas simbólicas, como ter um gay assumindo o Ministério dos Transportes. Isso não necessariamente modifica a política, mas é importante porque altera a configuração do governo e abre possibilidade para novas políticas. Há várias correntes no Partido Democrata que ele precisa atender. Até agora, Biden está conseguindo levantar algumas medidas progressistas e estou satisfeito nesse sentido. Certamente, ele irá implementar muitas politicas com as quais não estarei de acordo no futuro. Porém, eu entendo as limitações do tipo de governo e de sistema econômico que temos nos EUA. Ele não foi eleito para fazer uma revolução, mas sim derrubar a política de Trump e retomar a dita normalidade.
Bolsonaro sempre recorre à noção de soberania nacional quando recebe críticas sobre a gestão ambiental de seu governo. Dado o histórico de intervencionismo dos EUA, a tese do presidente brasileiro não seria legitimada por eventuais ações de represália do governo Biden?
Precisamos verificar quem está falando em nome da soberania e dos interesses brasileiros: Bolsonaro e os empresários que o apoiam ou os povos indígenas que vivem na Amazônia? Eu não sei qual será a posição do Biden sobre as nossas recomendações, mas nós baseamos essas diretrizes nas articulações dos movimentos que defendem a floresta, seus povos e a vida sustentável no Brasil. Não estamos ouvindo o agronegócio, interessado em aumentar o desmatamento e seus lucros. Não seguimos a visão dos setores interessados em exportar madeira e extrair minerais ilegalmente em territórios indígenas sem o consentimento desses povos. Nós queremos criar políticas corretas, que respeitem o Brasil e sua soberania. Não somos a favor de intervenções, estamos apenas ouvindo o que reivindicam os povos indígenas e suas organizações livres de manipulação.
Com informações DW