Entenda como a crise na Ucrânia e os cenários com a Rússia, podem afetar a economia mundial e a do Brasil
O ano de 2022 começou com uma forte tensão na política internacional, em torno da possibilidade de a Rússia invadir a Ucrânia, e a possível resposta dos Estados Unidos e seus aliados, em especial os países europeus, nesse cenário.
Diplomaticamente, a situação na região ainda parece distante de uma resolução, apesar de tentativas de negociação por parte dos diversos atores envolvidos.
Isso ocorre porque, na avaliação dos analistas, existem hoje ameaças econômicas mais relevantes: o movimento de alta de juros nos Estados Unidos que deve começar em março, a aparente desaceleração da economia da China e, em menor grau, a possibilidade do surgimento de novas variantes e piora na pandemia.
Comparado a esses elementos, apenas uma elevação significativa na situação ucraniana, como uma invasão efetiva teria um impacto maior, o que, para Paulo Feldmann, professor da FEA-USP, é “improvável” atualmente.
Economia internacional
Feldmann afirma que, até o momento, a crise não teve um impacto significativo na economia mundial, contribuindo muito mais para um cenário de “apreensão, um temor, mas de fato ainda não ocorreu nada”.
O professor avalia que a paralisação da situação, com uma via diplomática travada e a Europa ainda receosa de apoiar mais enfaticamente os Estados Unidos contra a Rússia, limita os efeitos da crise.
Para Livio Ribeiro, pesquisador do Ibre-FGV, o receio europeu está ligado a um cenário de risco maior no continente caso a situação na Ucrânia piore. Ele afirma que a Europa teria mais o que perder do que outras regiões, e que para a região, a tensão atual é um risco menor apenas do que a alta de juros nos Estados Unidos.
“A Rússia tem utilizado o suprimento de gás na Europa como uma arma nesse cenário, o que impacta diretamente os preços de energia e inflação na Europa”, diz. O país fornece cerca de 40% de todo o gás natural consumido no continente, o que dá um poder de impacto grande caso esse suprimento seja interrompido.
Ribeiro afirma que “é uma questão particularmente ruim para a Europa, e impacta um setor da economia europeia, o de energia, que tem sido muito afetado recentemente e influencia na inflação, em especial de curto prazo, e na atuação do BCE [Banco Central Europeu]”, podendo pressionar as autoridades em relação a altas de juros.
Indo além da situação na Europa, Ribeiro afirma que o cenário de tensão gera uma aversão a investimentos de risco, o que por consequência afeta preços de ativos vistos como voláteis ou menos seguros.
Mesmo assim, ele avalia que, a nível global, a situação na Ucrânia ainda fica atrás da alta de juros nos Estados Unidos e da situação chinesa e da pandemia, pensando em efeitos na economia.
Ian Cao, CIO da Gama Investimentos, diz que a tensão atual ocorre em um momento em que a maioria das grandes economias lida com níveis altos de inflação. A Ucrânia é um país importante no setor de commodities, sendo um grande produtor de trigo e milho e um canal de transporte para óleo e gás.
Os preços desses produtos já têm subido devido à possibilidade de conflito, mas de forma modesta. Se as altas piorarem, porém, os países “devem sofrer. Mas é difícil se antecipar a esses eventos”.
Além disso, ele afirma que a diversidade de fatores que influenciam os preços de ativos torna difícil isolar a contribuição específica de cada elemento, “principalmente em um cenário com coisas estruturalmente mais importantes para o dólar.”
“O pano de fundo é um ciclo positivo de commodities, que ajuda o Brasil, mas talvez o desenvolvimento mais importante é que depois de quase uma década de política de impulso fiscal, estamos em uma reversão nos Estados Unidos”, diz, citando a posição do Federal Reserve, banco central norte-americano, de elevar os juros em 2022 para combater a inflação.
Para Feldmann, o impacto econômico seria significativo apenas em caso de conflito. O mercado também parece ter temores reduzidos com o cenário atual, como aponta o índice VIX, que tenta medir a volatilidade nos investimentos, bem afastado de níveis de crises atingidos em 2008 ou no início da pandemia, acima de 80 pontos. Na terça-feira (1º), ele fechou e 21,96 pontos.
“Se a Rússia invadisse, por mais que a chance seja baixa, aí sim vira um problema, porque os europeus vão ter que protestar contra a Rússia, e com isso o fornecimento de gás vai ser prejudicado por lá já”, diz o professor.
Nesse cenário, a necessidade da Europa de procurar outros fornecedores encareceria os preços do petróleo e gás natural em um ritmo acelerado.
Ao mesmo tempo, a possibilidade dos Estados Unidos responderem com uma intervenção “colocaria a economia em pânico, diminuindo o ritmo de atividade da economia mundial. Seria uma crise muito séria, como não vemos há muitos anos”.
Segundo Cao, é difícil estimar o tamanho potencial desse evento.” Na imensa maioria dos cenários prováveis, o efeito é pequeno. A grande maioria de eventos como esse criam um ambiente de tensão, mas aí se acomodam e as coisas voltam a normal. Se gerasse uma guerra mesmo, aí o impacto é infinito, mas é pouco provável”.
Petróleo
Ian Cao afirma que a Ucrânia intensifica um processo já existente de alta no petróleo. “É um país relevante na parte de energia, então sempre pode levar a altas de preços, o que já gera um efeito mais prático na economia. A Rússia também é importante pensando em petróleo, gás”.
Por outro lado, ele diz que é sempre perigoso antecipar esse tipo de movimento na commodity, já que pode ocorrer uma precificação em excesso e, se a situação for mais leve, o preço cai.
Especialistas consultados também apontam que a alta recente do petróleo, chegando a US$ 90 o barril, está ligada muito mais a questões que já existiam em 2021 do que à situação ucraniana.
A primeira é o descompasso entre oferta e demanda do petróleo, com o preço baixo em 2020 desincentivando investimentos que geraram uma incapacidade do setor de atender à procura alta com a retomada econômica.
Já a segunda é a posição da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) de manter um ritmo lento de retomada da produção aos níveis pré-pandemia. Como ela reúne os principais produtores, a oferta segue baixa, e os preços altos.
Antes mesmo da crise na Ucrânia, os bancos já previam que o petróleo terminaria 2022 próximo dos US$ 100. Com isso, a contribuição da tensão atual para os preços deve ser pequena, a menos que o cenário visto como improvável de invasão se conforme.
Cao também diz que outros movimentos de alta em commodities não devem impactar as políticas monetárias dos países, já que a elevação dos preços nesses produtos já desacelera a economia e porque o problema não é estrutural, ou seja, mais duradouro.
Dólar
Já no caso da moeda norte-americana, um cenário de aversão de riscos é tradicionalmente favorável, já que os investidores costumam migrar para o dólar devido a sua segurança. Foi o que ocorreu, por exemplo, no início da pandemia.
Em 2022, o índice DXY, que compara o dólar com uma série de moedas de outros países, vêm subindo, mas Cao afirma ser difícil ligar isso exclusivamente à situação na Ucrânia, já que a perspectiva de alta de juros nos Estados Unidos também atrai fluxos de investimento para o país, valorizando a moeda.
“O Fed deixou muito claro que vai subir juros, e isso é mais importante para o equilíbrio das moedas no médio prazo. Um efeito de aversão a risco é normalmente desvalorização de moedas emergentes, busca por ativos mais seguros, mas no cenário atual é difícil conseguir isolar efeitos”, diz.
Ao mesmo tempo em que o cenário de aversão a riscos prejudica emergentes, como o Brasil, Livio Ribeiro avalia que esse movimento ainda é neutralizado, e superado, por outro, o de migração de investimentos as ações nos Estados Unidos – com a perspectiva de alta de juros por lá – para mercados vistos como descontados ou então setores em alta, caso das commodities.
Isso tem ajudado uma série de países emergentes, como o Chile, a África do Sul e o próprio Brasil, todos com valorização de suas moedas ante o dólar. Em janeiro, o real subiu 4,8%.
“Se observou uma volta das cotações de preços de commodities, entre elas o petróleo e minério de ferro graças à China, e alta nos preços de energia e gás. Isso leva países exportadores de commodities a uma posição mais forte”, diz.
“Pontualmente tem sido vantajoso, não só para o Brasil. Mas esse movimento pode reverter e prejudicar, depende da evolução das coisas. São inúmeros choques ao mesmo tempo, que mudam de tamanho e direção, o resultado final disso incide sobre a moeda”, diz.
Para o economista, apenas se a aversão a riscos aumentasse muito, com uma escalada significativa na Ucrânia, ela passaria a pesar mais que o fluxo favorável atual para esses países. Novamente, porém, isso parece improvável.
Consequências no Brasil
Livio Ribeiro afirma que, para o Brasil, a situação na Ucrânia ainda é economicamente “algo muito exótico, quase não tem efeito direto, e acaba sendo um canal muito indireto”.
Ele avalia que, diretamente, o Brasil pode enfrentar duas consequências principais. A primeira seria uma queda no comércio com o seu segundo maior parceiro comercial, a zona do euro, se a situação na região continuar tensa ou piorar.
A segunda seria uma alta no preço dos fertilizantes, o que pode respingar no de alimentos, já que o maior fornecedor do país, Bielorússia, está envolvido na crise ucraniana, com os preços desse produto disparando ao redor do mundo.
Por outro lado, economistas da Genial Investimentos afirmaram, em relatório, que como a Ucrânia e a Rússia são o quarto e quinto maiores exportadores de milho, respectivamente, as tensões envolvendo os países podem abrir um espaço nas exportações do produto aqui do país.
O Brasil tem potencial para ocupar esse espaço, o que seria favorável para o agronegócio. Ao mesmo tempo, o direcionamento desses produtos para o exterior, com demanda e preços maiores, também elevaria os preços internamente, prejudicando a população e afetando a inflação.
Já Paulo Feldmann avalia que a situação da economia da China em especial pode ter um impacto “muito maior sobre o Brasil do que a Ucrânia”.
“É um problema maior caso esteja em desaceleração, porque pode comprar menos commodities, ou então se optar pela diversificação de fontes de fornecedores internamente e externamente”, diz.
Ele também afirma que a alta de juros nos Estados Unidos deve ter um impacto grande, potencialmente com retirada de investimentos no mercado brasileiro, impulsionada pelas apreensões com a situação fiscal e as eleições. “Com isso, o dólar subiria, e aí impactaria a inflação”.